domingo, 2 de maio de 2010

Huxley e a cadeira de Van Gogh


O que inspirou Van Gogh a pintar uma cadeira?

Não sou pintora (infelizmente), mas sempre que vejo algo extasiante - o que Hoffman viu quando criança* - imediatamente tenho a vontade de imortalizar em uma tela. Vontade não, necessidade!
E não adianta tirar foto, não é igual....


Nunca tive a vontade de pintar uma cadeira, um ventilador, ou qualquer outro objeto deste tipo. Talvez porque eu nunca os tenha visto além de sua utilidade prática e momentânea.

Dos livros, meu interlocutor desviou-me a atenção para o mobiliário. No centro da sala havia uma pequena mesa para máquina de escrever. Junto a ela, do lado oposto ao meu, estava uma cadeira de vime e, além dela, uma escrivaninha.
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Eu examinava minha mobília, não como o utilitário, que tem de sentar-se em cadeiras, escrever em escrivaninhas e em mesas; não como o operador cinematográfico ou o investigador científico, mas como o esteta puro, cuja única preocupação se cinge às formas e suas relações dentro do campo visual ou dos limites de um quadro.
Mas, à medida que prosseguia em minha investigação, essa análise puramente estética de cubista foi sendo substituída pelo que poderei apenas definir como sendo a visão sacramentai da realidade: voltei ao estado em que me encontrava quando contemplava as flores — a um mundo onde tudo brilhava, animado pela Luz Interior, e era infinito em sua importância.
Assim, os pés daquela cadeira — quão miraculosa a sua tubularidade, quão sobrenatural seu suave polimento! Consumi vários minutos — ou foram vários séculos? — não apenas admirando aqueles pés de bambu, mas em verdade sendo-os, ou melhor, sentindo-me neles; ou, empregando linguagem talvez mais precisa (pois "eu" não estava em jogo, do mesmo modo como, até certo ponto, "eles" tampouco o estavam), sendo minha Despersonalização na Desindividualização que era a cadeira.
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Podemos agora, após esta longa mas indispensável excursão ao reino da teoria, voltar àquela maravilhosa realidade — quatro pés de cadeira, de bambu, no meio de uma sala. Quais narcisos silvestres de Wordsworth, eles me proporcionaram toda sorte de riquezas — a inestimável dádiva de uma concepção nova e direta da verdadeira Natureza das Coisas, bem como um tesouro mais modesto, sob a forma de compreensão, particularmente no campo das artes.
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Uma rosa é uma rosa, e nada mais que uma rosa; mas esses quatro pés de cadeira, além de pés de cadeira eram São Miguel e todos os anjos.

Os trechos acima foram retirados do livro: "As Portas da Percepção"**.

Van Gogh, eu suponho, deve ter visto/sentido tudo isto e muito mais. Sua capacidade de captar além da média dos mortais infelizmente o levou a loucura....

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* Albert Hoffman - o pai do LSD:
Um encantamento deste tipo, que eu experimentei na infância, permaneceu notavelmente vívido
desde então na minha memória. Aconteceu numa manhã de maio - eu esqueci o ano .....
Enquanto eu passeava pelos frescos bosques verdejantes, cheios de canções de
pássaros e iluminado pelo sol da manhã, tudo de uma vez e cada coisa apareceu numa incomum luz
clara. Isto era algo que eu simplesmente não tinha notado antes? Estava eu descobrindo, de repente,
como de fato a floresta da primavera se parece? Brilhava com o esplendor mais bonito, falando ao
coração, como se quisesse me cercar de sua majestade. Eu estava repleto de uma indescritível
sensação de alegria, identidade, e uma segurança repleta de felicidade.

Eu não tenho nenhuma idéia de quanto durou este encantamento. Mas me recordo da preocupação
ansiosa que eu sentia enquanto a radiação ia lentamente se dissolvendo e eu nela caminhando: como
pôde uma visão, que era tão real e convincente, tão diretamente e profundamente sumir - como pôde
terminar tão depressa?

E como eu poderia contar para qualquer pessoa sobre isto, como minha alegria
transbordante me compelia a fazer, já que eu sabia não haver palavras para descrever o que eu tinha
visto?
Os trechos acima foram retirados de: Albert Hofmann: LSD - Minha Criança Problema

Hoffman morreu, em 2006, com 102 anos!



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** As Portas da Percepção - Aldous Huxley - 1954



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